Dallagnol, o PowerPoint e a Presunção de Inocência

Recentemente o STJ publicou decisão, condenando o Deltan Dallagnou, ex-chefe da força tarefa da Operação LavaJato, ao pagamento de indenização do valor de R$ 75.000,00 (setenta e cinco mil reais) em favor do ex-presidente Lula, à época investigado pelo MPF por suposto envolvimento em organização criminosa encrustada junto à Petrobras, pelo uso, em coletiva de imprensa de um PowerPoint em que fazia alusão ser o ex-presidente chefe daquela organização.

No meio social a decisão causou alvoroço, com memes e ditados populares tais como “No brasil é o poste que faz xixi no cachorro”.

A decisão do STJ deve ser analisada em diversos primas, dentre eles, seu mérito, a questão processual, a questão política.

No campo do mérito, ou seja, se a decisão é acertada pelo seu conteúdo, está correto o entendimento do STJ. A constituição Federal em seu artigo 5º, inciso LVII assegura que “ninguém será considerado culpado até o transito em julgado de sentença penal condenatória, norma que explicita o princípio da presunção de inocência ou não-culpabilidade”.

Previsão semelhante há tanto na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto San José da Costa Rica), em seu artigo 8º, item 2º, primeira parte que possui a seguinte redação “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”, cujo Brasil é signatário conforme Decreto678/1992, bem como no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, em seu artigo 14, item 2, que possui a seguinte redação “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”, que o Brasil também é signatário conforme Decreto 592/1992.

A presunção de inocência que é um direito Humano/Constitucional, reconhecido tanto na Constituição Federal como nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos do sistema Regional Interamericano que o Brasil é signatário,  e pode ser interpretado sobre diversas facetas, ou seja, como regra probatória, regra de tratamento e regra de julgamento.

No tocante a regra probatória, na Linha de Ferrajoli (Itália), Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (Brasil) e Franco Cordero (Itália), o princípio da presunção de inocência assume a face do brocardo (Nulla acussatio sine probatione) característica do sistema acusatório, em que cabe ao órgão de acusação a carga de provar dentro do processo criminal a culpa do imputado (atribuição total da carga probatória), ou seja, provar a autoria,  a materialidade e todos os elementos analíticos do crime (conduta, nexo causal, resultado, inexistência de causas de justiçarão como a legitima defesa, e a culpabilidade do imputado, provando a imputabilidade, a consciência total ou potencial da ilicitude do fato e a exigibilidade de comportamento diverso frente à ação.

No tocante a regra de julgamento, o princípio da presunção de inocência assume a faceta do brocardo in dubio pro reo, no sentido de que, se o órgão de acusação não se desincumbir da carga probatória lhe imposta conforme acima explicado, o acusado no processo criminal deve ser absolvido, tratando-se, portanto, de política criminal de gestão de erros judiciários. Vale aquela velha frase “mais vale mil culpados livres do que um inocente preso”.

No tocante a regra de tratamento, o princípio da presunção de inocência divide-se em duas categorias: endoprocessual e extraprocessual.

Endoprocessual pois o princípio da presunção de inocência exige do Estado Juiz, que trate o acusado como inocente até a transito em julgado, limitando-se por exemplo, a não decretar prisões cautelares sem fundamentação concreta da necessidade e sem respeitar a proporcionalidade e razoabilidade da medida, resguardando a medida extrema para fins de necessidade comprovadamente demonstrada, concedendo liberdade provisória quando presente os requisitos, aplicando sempre que possível as medidas cautelares diversas da prisão, não submetendo a pessoa ao uso de algemas sem necessidade, não submetendo o Réu a apresentar com roupas de presídio ou algemado em sessões de Julgamento perante o Tribunal do Júri, competente para julgar os crimes contra a vida etc.,

E enfim, o ponto que nos interessa, eis que o princípio da presunção de inocência também funciona como regra de tratamento extraprocessual.

 Isso significa, que as autoridades públicas, seja o delegado ou o promotor (Juiz nem se fale, pois se assim for sequer pode julgar o caso por clara parcialidade) expor o imputado na imprensa passando a população com afirmações incisivas e certeiras de que determinada pessoa é autora de um crime pelo qual é investigado ou processado.

Os efeitos deletérios dessa atitude de membros do Estado são nefastos na vida das pessoas, e mesmo com a absolvição delas no processo criminal, suas vidas serão para sempre destruídas.

Há um caso emblemático no Brasil, trata-se do caso “Escola base”.

O caso escola base retrata uma investigação policial de abril de 1994 em que os donos da escolinha fundamental base localizada no Bairro da aclimação na cidade de São Paulo (Cushiro Shimada e Maria Aparecida Shimada, a professora Paula Milhim Alvarenga e o seu esposo e motorista Maurício Monteiro de Alvarenga) foram acusados de abusos sexuais contra crianças que lá estudavam, mediante denuncia de uma mãe, já que o filho começou a formar frases e gestos dando a entender que lá ocorria abusos sexuais das crianças.

No caso, sem provas e sentindo-se bem por estar aparecendo em toda a imprensa do Brasil, o Delegado responsável pela investigação passou a afirmar para a imprensa que de fato lá havias acontecido os crimes e que os envolvidos eram culpados, quando pressionado por mais notícia chegou ao ponto de inventar para a imprensa provas que sequer existiam.

Os investigados foram julgados e escrachados pela imprensa de todo o Brasil, havendo manchetes como “Kombi era Motel na escolinha do sexo”; “escola é acusada de prostituição” dentre outras.

O Delegado do caso foi afastado pelos abusos, assumindo em seu lugar o Delegado Gérson de Carvalho, e três meses depois de iniciada a investigação todos os suspeitos foram inocentados, mas a vida deles para sempre foi destruída, foram a falência com o fechamento da escola e sem credibilidade para abrir outra, expostos para todo o Brasil e onde fossem o preconceito os acompanhava.

É para evitar esse tipo de imbróglio, em especial em casos midiáticos que a presunção de inocência serve como regra de tratamento extraprocessual, para evitar que as autoridades exponham investigados à imprensa como se culpados fossem.

No caso do chefe da força tarefa da Lavajato Deltan Dallagnou e seu infâmio PowerPoint expondo o investigado Luiz Inácio Lula da Silva como se culpado fosse lhe direcionando e descrevendo sua culpa para a sociedade quando sequer havia processo ou decisão condenatória transitada em julgado, Deltan violou a presunção de inocência em seu viés regra de tratamento extraprocessual que é regra Constitucional e prevista nos tratados internacionais de Direitos Humanos que o Brasil é signatário.

O problema reside não em investigar, mas sim de comprar apoio popular à operação lavajato expondo daquela forma um investigado notório para angariar apoio popular a força tarefa, havendo, inclusive no comportamento de Delltan possível artimanha política em que utiliza o aparato da justiça criminal em verdadeira guerra para destruir seu inimigo político, o que se convencionou-se chamar de Law Fare.

Há quem diga o desacerto da decisão do STJ pois Deltan era membro do Ministério Público Federal que por sua vez é órgão do MINISTÉRIO Público da União, e que portanto a ação deveria ser direcionada contra a União e não contra Deltan pessoa física, nos moldes do Art. 37, § 6º da Constituição.

Essa questão deixo para ser respondida pelos meus colegas administrativistas e processualistas do processo civil.

De toda sorte, a informação acima é importante para destacar que o Peru já foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos a indenizar um investigado que foi exposto como se culpado fosse nos meios de comunicação e sem a devida comprovação legal de sua culpa no processo criminal pelo Ministério Público daquele (Caso J. vs Perú, sentença de 27/11/2013).

Conclui-se portanto, acertado o entendimento do STJ, que ao condenar Deltan não apenas repara o dano reafirmando a categoria jurídica da presunção de inocência como um direito individual do investigado e autor da ação cível, mas passa aos agentes estatais como um todo um recado de que no processo penal forma processual é garantia e limite de poder (Aury Lopes Jr.), que o autoritarismo foi desterrado do Brasil com a Constituição de 1988, que os fins não justificam os meios e que não se combate a corrupção as custas de atropelamento dos direitos individuais dos acusados. Por: Maicon Francisco Trida Galvão, Advogado Criminalista da Calixto Advogados Associados, Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estadual de Londrina.

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